NADA DE ATACADORES
UMA ENTREVISTA COM TIM ETCHELLS POR FRANCISCO FRAZÃO E MARK DEPUTTER
Derry e Lisboa, 27 de Novembro de 2013
Mark Deputter – Para começar com Forced Entertainment: são 30 anos de trabalho e o que me parece interessante, e também um pouco estranho, é que se trata de uma companhia internacionalmente conhecida, já garantiram o vosso lugar na História do Teatro e continuam a ser olhados com desconfiança pela parte mais estabelecida do teatro. Os Forced Entertainment sempre foram descritos como uma companhia experimental, avant-garde, do tipo dali-pode-vir-qualquer-coisa. Porque é que achas que isto acontece?
Tim Etchells – Julgo que em parte é porque nos atraem coisas que são de certa forma desconfortáveis e não-resolvidas. Muita gente gosta muito do trabalho, claro, mas sei que somos puxados para formas e texturas não-resolvidas, ou difíceis, em termos do que a apresentação produz. Essa pode ser uma das razões.
Outra pode ter que ver com um interesse por um tipo de estética muito caseira, trash, informal. Muitas vezes parece que não se fez grande coisa; o trabalho pode parecer remendado, ou preguiçoso, como se não se estivesse realmente a tentar estar ali. A verdade é que é muito trabalhado e preciso e há inúmeras decisões … mas temos o cuidado de esconder isso!
Foi muito interessante apresentar The Coming Storm em Avignon. Correu mesmo bem, mas nos primeiros quinze minutos podia sentir-se o público, que provavelmente não conhecia lá muito bem o nosso trabalho, a pensar: “O que é isto? O que é que eles estão a fazer? Nem sequer parece uma proposta para um espetáculo!” Começa de uma maneira tão informal, com eles a arrastarem os pés no início para pegarem no microfone. De certa forma, é muito antiestético e acho que as pessoas levam algum tempo até se adaptarem ao trabalho e a verem que há um conjunto hábil e complexo de decisões e transações muito hábeis. Não é logo evidente. Em muitas companhias de sucesso, a partir de certa altura consegue-se mesmo ver o dinheiro em palco, vê-se o orçamento de produção! Está todo ali. E o que sinto com o nosso trabalho é que raramente se consegue ver o dinheiro, continua a parecer caseiro. O dinheiro para nós tem a ver com as pessoas e com ter tempo para o processo. Não é para subitamente começar a usar figurinos da Prada!
Francisco Frazão – Uma dramaturga inglesa disse-me recentemente que alguém que acha que não gosta de teatro vai provavelmente adorar um espetáculo dos Forced Entertainment (e alguém que acha que sabe muito de teatro provavelmente não vai gostar). Interessou-me mais a primeira parte: que pode ser uma experiência emocionante para quem sempre achou que o teatro não era para si.
TE – Acho que isso é muito verdade. Em muitos lugares, e certamente em Inglaterra, o público que vem ver os Forced Entertainment não é necessariamente uma população habituada a ver teatro; ou não vê muita coisa, ou não gosta de muito do que encontra no teatro. Isso é talvez porque o que fazemos é bastante direto, e tem um lado lúdico e solidamente quotidiano. Acho também que desconfiamos do teatro – a maior parte parece-me bastante absurda – e isso sente-se no trabalho, sente-se que estamos dentro do meio, mas também a questioná-lo. Não tratamos a forma de modo respeitoso, fazemos uma trapalhada com o teatro, partimo-lo e esmigalhamo-lo, e acho que as pessoas se podem relacionar com essa atitude, especialmente quem ‘vem de fora’.
Mas, claro, é um paradoxo porque, ao mesmo tempo que há essa energia lúdica e destrutiva relativamente ao teatro, estamos a tentar, de forma muito sofisticada, construir coisas lá dentro. Portanto, trata-se de desmontar o teatro e simultaneamente trabalhar com ele e reinventá-lo. Passámos trinta anos com estas perguntas: o que fazer com o teatro…
MD – Porque é que nunca fizeram repertório, como Shakespeare ou Beckett, peças já existentes?
TE – Enquanto companhia temos um enorme problema com o diálogo – o centro do drama em que os performers estão a falar uns com os outros numa situação ficcional. Sempre me causou perplexidade a forma explícita de diálogo, que é aquilo em que se baseia o repertório dramático.
Se olharem para as nossas peças ao longo de trinta anos, vêem que quase nunca há diálogo. Pode ter-se a noção de que as pessoas estão a falar umas com as outras, mas trabalhamos em formas de fazer com que isso aconteça sem fechar o círculo de modo a que se torne diálogo. Portanto, fazemos uma sessão de perguntas e respostas, mas muito mais no formato público de perguntas e respostas que sabe que há um público. Ou criamos algo parecido com diálogo, em que as figuras nos espectáulos fazem afirmações públicas, mas secretamente estão a falar umas com as outras – portanto algo aparentado ao diálogo mas que se repercute no público. De vez em quando lemos peças nos ensaios – Pinter ou Shakespeare ou Tchékhov-, e sempre que o fazemos fico fascinado, mas superdesconcertado, não sei o que fazer com aquilo. E é interessante, porque gostei do trabalho de repertório dos tgSTAN, do Wooster Group, dos espetáculos do Richard Maxwell com as suas peças… Criam um ótimo conjunto de soluções para esse problema do diálogo e da ficção. Mas parece que não faz realmente parte da nossa linguagem.
De certa forma gostava que fizesse. Continua a ser um mistério para mim. Adoraria ser capaz de enfrentar isso. Mas honestamente não sei como, é algo que me é realmente estranho. É demasiado fechado, acho que é isso.
As coisas que nos influenciam – em termos de texto – são formas muito mais abertamente públicas: entrevista, conferência de imprensa, stand-up comedy, cabaret, julgamento mediático… Formas mais diretas e populares, não-dramáticas, não-ficção. Tem sido cada vez mais por aí que temos trabalhado. Com o que é público. E o texto dramático não permite propriamente isso.
MD – E o teu trabalho fora do teatro ou as tuas colaborações com gente fora dos Forced Entertainment? O que é que para ti é importante nessas coisas?
Valorizo muito esse trabalho noutras áreas. O facto de deixar falar outro lado de mim – longe da negociação interminável que é o processo em grupo!
Trabalhar numa galeria, ou na rua com as peças de néon, ou até escrever ficção ou fazer projetos na Internet – todas estas coisas também permitem uma relação muito diferente com a ideia de “público” – pode criar-se um espaço que é mais íntimo, ou mais público do que no teatro. Também há uma relação diferente com o tempo nessas obras – enquanto espectadores, uma peça que é um letreiro de néon ou um texto na parede não requer uma hora e meia do vosso tempo – pode olhar-se para ela enquanto se passa, ou vê-la da janela do comboio. Estas outras formas permitem-me entrar na vida das pessoas por um caminho diferente. Nas colaborações, por exemplo com o Ant Hampton, ou com os artistas plásticos Elmgreen & Dragaet ou com Vlatka Horvat – posso pensar sobre a performance de maneiras distintas daquelas a que estou habituado no trabalho com os Forced – sou levado para um território novo.
FF – Há duas coisas que podemos associar ao vosso trabalho em termos de estrutura. Uma é a história ou situação que não chega ao fim, que é cortada; a outra é a lista ou catálogo que nunca mais acaba. O que é que te interessa nestes dois extremos, a interrupção e o interminável?
TE – O que na verdade junta essas coisas é que à sua maneira são ambos projetos incompletos. A cena, ou a história que é cortada, e a lista ou catálogo em progresso, que por definição nunca pode ser completada. E por causa dessa incompletude, estas formas atiram o espectador ou a espectadora para uma situação em que têm de, ou são convidados a completar algo sozinhos; fazer o trabalho de concretizar ou imaginar. Isso é uma parte importante do meu trabalho em qualquer meio, seja no contexto da arte contemporânea, ou no teatro e performance, ou na escrita; a ideia de que o espectador ou o observador, ou o leitor, é um participante ativo no processo de produção de significado e de constituição do acontecimento. Estas formas são estratégias para envolver as pessoas enquanto colaboradores imaginantes. No teatro, não quero que as pessoas corram para o palco e façam coisas malucas, não têm de “entrar” dessa forma, mas têm de se envolver através de uma imaginação muito ativa, pondo em causa e construindo cenários por si próprias. Estes dois dispositivos – a lista e o fragmento – têm muito que ver com isso.
E também mostram um processo: quando se ouve alguém a construir uma lista em improvisação, está-se a ouvir alguém a pensar em voz alta. Portanto, há esse drama de para onde é que vai aquela cabeça, e para onde é que iria a minha cabeça com o mesmo assunto. E a interrupção, por seu turno, também mostra sempre que o que está à vossa frente é contingente, contextual. Pode acontecer alguma coisa e essa coisa pode ser cortada. Sobre a afirmação paira um ponto de interrogação. Nada é inevitável. É tudo um processo que se vai desenrolando.
MD – Outro par de palavras contrastantes: tristeza e humor, ambos também muito presentes em todo o teu trabalho. Parece muito melancólico, triste, por vezes mesmo negro; mas ao mesmo tempo o humor é um elemento importante do teu trabalho.
TE – Outra coisa importante que tem tanto que ver com a lista como com os cortes é que sempre tivemos (ou eu sempre tive) muita relutância em fazer afirmações singulares e definitivas. Não gosto de formas dramáticas ou significados certinhos que precisam de ser amarrados ou bem apertados como atacadores. É muito mais interessante para mim fazer algo que é esfarrapado e incompleto; em que a articulação está quebrada aqui e ali.
E este interesse na relação entre o triste e sentimental e o cómico, ou o violento e o cómico… Estão muitas vezes ligados porque enquanto seres humanos literalmente não sabemos como reagir ao mundo, não sabemos se tem graça ou não. Tem graça e claro que não tem graça nenhuma. E o trabalho tenta falar sobre esse estado de não-saber, e por essa razão estou interessado em situações nas quais por um lado estás a rir, de preferência bastante, tem graça, é ótimo; e depois subitamente já não estás nada a rir, é péssimo. Aterrador, abjeto, horrível. E depois tem graça outra vez. Este lado vira-casacas é muito propositado e por vezes bastante cruel. É uma espécie de indecisão radical que está muito próxima do centro do trabalho. Grande parte do trabalho com a linguagem nas minhas obras com letreiros de néon tem uma dinâmica semelhante – fragmentos que não se conseguem exactamente situar, cómicos e melancólicos, zangados e desesperançados, derrotados.
É sobre como compreender o que nos está a acontecer; as situações que estamos a criar e em que tentamos viver enquanto seres humanos apanhados dentro de todos estes sistemas: o corpo, mortalidade, sociedade, e política e cultura. A maquinaria é essa e a pergunta é como compreender isso, que tipo de histórias contarmos a nós próprios – isso está no centro do trabalho.
MD – Isso também tem que ver com criar uma relação com o espectador?
TE – Liga-se ao desejo de criar um objeto que não pode ser contido por uma leitura única. Estou a tentar criar uma experiência para o espectador ou o visitante da galeria que não se confirme a si própria, de várias maneiras diferentes. Algo que te mantenha alerta, enquanto espectador, que te obrigue e és obrigado a negociar todas estas voltas e reviravoltas.
E claro que o que faz também é obrigar-te a pensar sobre aquilo que estás a ver, e sobre o que é ver em primeiro lugar, sobre qual é o teu papel, enquanto espectador. E qual é o teu desejo, enquanto espectador. No teatro, há uma relação implícita, um sadismo voyeurista, uma sede de sangue até. Queremos ver danos, queres ver trauma [risos]. As pessoas em palco têm de sofrer de alguma maneira! Estou a usar palavras fortes, mas acho que há um desejo de sangue, de um ou outro género. Queres ver problemas, pessoas em apuros. Não é interessante ver pessoas que não têm problemas. Só nos interessam os problemas, enquanto espectadores. Porque é que será? Nas obras dramáticas, isso é fácil de identificar, mas mesmo no tipo de trabalho que fazemos, a atração pela dificuldade e pelo trauma é muito grande. Portanto isso é posto em causa. E é ridicularizado, bem como a grandeza do trágico.
Acho que em todo o trabalho há um conjunto grande de reflexões sobre o que é ser espectador, o que é ser um público, o que é ser um leitor, o que é deparar-se num espaço com uma obra de arte – és sempre forçado a pensar sobre o teu próprio papel, a tua própria posição.
FF – Também sobre o público: a ideia de presença é importante para ti, é algo em que estás profundamente interessado. Rancière, n’O Espectador Emancipado, tem muita razão ao criticar a ideia de que o teatro é automaticamente sobre a presença e a comunidade mesmo antes de o espetáculo começar. Mas isto não é uma coisa que tomes por adquirida, é algo que é trabalhado, que se constrói, que cada apresentação tem de construir.
TE – Uma questão importante no trabalho para palco (e também consigo ver isto noutras áreas do meu trabalho) é o que significa estar diante de outras pessoas. O que é que acontece quando 200 pessoas olham para uma pessoa? O que é que significa ser visto e ser objeto de atenção e projecção? Qual é a economia disso? Mas também: como é que podemos estar diante de outras pessoas? Quais são os processos envolvidos e o que é que esses processos produzem? Por vezes o meu trabalho para palco é muito teatral, brincando absurdamente com as grandes ferramentas que o teatro te dá (figurinos e música e canções e dança e luzes e drama). Mas os espetáculos diminuem sempre o que usam desse código teatral até chegarem a algo muito mais minimal – uma presença humana muito básica, isto é, a noção de que a performance para nós é uma sala com dois grupos de pessoas, um dos quais está sobretudo a ver o outro. Não é mais do que isso, na verdade; algumas pessoas numa sala, e algumas delas a ver as outras. Muito simples, muito quotidiano. Falamos desta ideia de uma atitude de trabalhador competente relativa ao que estamos a fazer, uma coisa quase brechtiana de pessoas em palco que estão a fazer um trabalho. Chega-se frequentemente a estes pontos nos espetáculos em que se vê simplesmente os performers, com um ar cansado ou exaustos pelo que estiveram a fazer, e também de repente estão simplesmente aqui, contigo. E que estranho espaço este para partilhar.
Acho que tens razão, que esse espaço de presença é construído, que é isso que o trabalho faz em cada vez: constrói uma comunidade temporária. De facto, desde o minuto zero do espetáculo até ao momento final, o que se está a fazer, sempre, é constituir o público. Está-se a testar e a criar um espaço ao mesmo tempo. É verdade que isto é um processo ao vivo, frágil, que começa de novo em cada vez.
MD – Quando olho para as diferentes áreas do teu trabalho, fico com a impressão de que a coisa que junta tudo é a escrita, a linguagem e dar forma à linguagem. No teu trabalho em arte contemporânea, nas instalações-vídeo, no teatro. O ponto de partida criativo é esse?
TE – É uma das coisas que liga tudo o que faço. Deve ser a coisa mais importante e recorrente. É central, mas não é condutora. É a coisa que impregna tudo. É interessante porque, sobretudo no trabalho para palco, pode ser o ponto de partida, mas quase sempre não é. O ponto de partida tem quase sempre que ver com fazer, é visual; é provavelmente um figurino, por estranho que pareça, ou uma combinação qualquer de espaço e figurino e posição para os performers. E associado a isso, rapidamente as ideias sobre o que é dito.
Se pensar em First Night, por exemplo, a peça que fizemos em 2000, que assume a forma de um vaudeville ou cabaret cómico que está a correr muito mal desde o início, a primeira coisa para isso foi o sorriso. Tinha os performers vestidos como se estivessem aqui para um tipo qualquer de entretenimento de cabaret, e com uma maquilhagem ligeiramente ridícula, e tinha-os a fazer uns sorrisos dementes. E ficaram assim em linha nos ensaios, ora sim ora não, durante uma semana. Não conseguia pensar em nada para eles dizerem ou fazerem. Mas continuei a olhar para aquilo, e continuámos a olhar para aquilo, e a achar aquilo extremamente esquisito, e estranho, e forte. E demorou muito tempo até descobrir que linguagem pertencia ali. É muitas vez isso que acontece. Há uma coisa visual primeiro e depois é que vem a linguagem.
Outros espetáculos como Speak Bitterness, ou Quizoola!, ou Tomorrow’s Parties, ou Dirty Work vêm da linguagem, claro. Mas é interessante que, mesmo nesses, o que vem primeiro é uma relação dinâmica com o público que é convocada pela linguagem. A ideia de confessar – que é sobre estar perto do público e recebê-los com o olhar, e estabelecer contacto com eles, e tentar testar a afirmação dizendo-a como se fosse a sério – , para mim é como o estado estado de relação que estabeleço com o público em Speak Bitterness quase antes de ter uma única linha de texto. O que me prende é a ideia dessa relação. É assim também para Tomorrow’s Parties, a ideia de fazer previsões sobre o futuro vem primeiro – independentemente de qualquer ideia especial sobre o que possam de facto dizer. Claro que estas coisas se formam através da linguagem, mas estranhamente o interesse pelos estados de relação vem ligeiramente antes.
Outro ponto de partida é obviamente o meu caderno. E isso é sobretudo linguagem – não tanto desenhos ou imagens. Sou um colecionador de linguagem – coisas entreouvidas, coisas dos jornais ou da Internet, expressões que me vêm à cabeça – estou constantemente a colecionar coisas que possam um dia vir a dar jeito! E fascinam-me muito formas particulares de linguagem ou vozes particulares.
FF – Talvez outra coisa que também vem antes da linguagem, que a antecede, é a ideia de jogo e de regras que é preciso estabelecer. Jogos de linguagem são obviamente outra maneira de olhar para espetáculos como Quizoola! e And on the Thousandth Night…
TE – Estamos sempre à procura de jogos. Uma vez decidido que o espetáculo não é uma história, esta ideia do jogo ou do ritual é importante; que o que se vê é um grupo de performers a trabalhar sobre um tema dentro de um conjunto de restrições torna-se uma forma muito útil de estruturar, de fazer dramaturgia, de fazer o tempo fluir de maneiras diferentes. E a ideia do jogo pode ser uma parte muito útil disto mesmo. Podemos pressionar-nos uns aos outros, podemos jogar uns com os outros e as mudanças de abordagem dão-te qualquer coisa das forças dinâmicas que se poderiam esperar de uma narrativa. Mas são constituídas diversamente – porque na narrativa há aquela ideia ilusionista de um mundo ficcional coerente com causalidade e consequência, enquanto que nos jogos com regras tudo é contingente, tudo é potencialmente alterável. Às vezes são jogos visuais, às vezes são jogos físicos, e muitas vezes são jogos linguísticos. Mas esse espírito do jogo e do brincar, da ludicidade, das regras é muito importante no trabalho. E sirvo-me dessas coisas porque são formas alternativas de pensar sobre o mundo para além da narrativa. Porque a narrativa tem o seu conjunto de propriedades tirânicas que nos põem de pé atrás, por uma razão ou por outra.
FF – Começaram a trabalhar em 1984 e mudaram-se para Sheffield quando a Thatcher estava no poder. Trabalhando nesse contexto, o que é que aprendeste que possas ensinar aos artistas mais novos que hoje enfrentam dificuldades semelhantes? O que é que lhes podes ensinar e o que é que achas que os artistas mais novos te ensinaram ao longo dos anos, o que é que te podem ensinar agora?
TE – Não gostaria de pensar em estar nessa posição hierárquica, mas acho que os artistas têm jeito para encontrar formas de criar espaço para a sua prática. E têm jeito para encontrar maneiras de circular pelas e através das restrições que os ambientes políticos e económicos lhes põem no caminho. E na verdade cada período tem o seu conjunto muito particular de questões e problemas e também de oportunidades.
Embora tenha sido difícil para nós, acho honestamente que agora é muito mais difícil. Hoje em dia, as economias neoliberais em crise onde vivemos, no Ocidente, estão cada vez mais peritas em policiar o espaço e a oportunidade. Houve uma crise económica entre início e meados dos anos 80, mas por estranho que pareça também era um espaço de relativa liberdade. Podia estar-se desempregado, como nós estivemos durante vários anos, só a receber uma pequena quantia do Estado, por via do rendimento mínimo, a viver num nível muito baixo, mas fomos capazes de andar para a frente com o nosso trabalho. Fizemos isto, diria, durante três anos antes de termos algum financiamento. Fosse ele qual fosse. Depois tivemos um pequenino financiamento. E por causa do crash conseguimos encontrar um espaço industrial para trabalhar, portanto n um ano tínhamos o nosso próprio espaço onde podíamos estar 24 horas por dia. Agora nem isso temos! A nossa situação de trabalho no início era de baixa-fidelidade e assente na auto-organização, mas era possível. Enquanto que agora se se estiver desempregado o Estado quer muito mais controlo. E se se tiver acabado de sair da universidade, sai-se com grandes dívidas. Fico sempre impressionado quando viajo e encontro jovens artistas a trabalhar em projetos, pessoas com muito jeito para encontrar maneiras de continuar.
Uma coisa interessante para mim é que somos um coletivo, são seis pessoas, e seis pessoas que trabalham juntas há quase 30 anos. Isso é muito difícil de fazer, o que não surpreende. Tem também que ver com as personalidades das pessoas e a relação entre elas, claro, mas nos dias que correm essa estabilidade é difícil de imaginar – a economia das artes é um exemplo extremo de trabalho global itinerante. Toda a gente está sempre a mudar-se, basicamente a circular para onde há dinheiro, e onde há oportunidades, e lidando com redes em mutação. Há menos elencos ou parcerias permanentes e muito mais redes flexíveis de associação e colaboração que vão de Bruxelas a Berlim, Lisboa, Paris, Munique… De certa forma, é um sinal incrível do tipo de resistência e ‘desenrascanço’ dos artistas, mas também uma muito pura manifestação daquilo de que o capital e o mercado de trabalho gostariam: contratos a curto-prazo sem fim e recombinações sem fim. Claro que não se tem nenhum tempo livre, está-se sempre a trabalhar, sempre produtivo. Faz-me pensar sobre qual é o lugar dos compromissos permanentes ou de longo-prazo. E sobre a importância da lentidão. Por mais que eu goste de andar a correr de um lado para o outro como um doido, a fazer dez coisas ao mesmo tempo, acho que a experiência da companhia, o trabalho com a companhia, deriva deste compromisso lento e a longo-prazo, e isso é superimportante para mim. Porque desenvolve uma linguagem e uma forma de trabalhar – e isso demora muito tempo. E para isso, só é necessária persistência, e era isso que costumávamos dizer, na verdade, nos idos de 80, que a nossa arma secreta era que íamos simplesmente continuar; continuar a trabalhar, a encontrar maneiras, a deixar as coisas acumular ao longo dos anos de uma forma realmente forte e positiva.
FF – A vossa tática de guerrilha.
TE – Uma lenta tática de guerrilha. Não muito dinâmica, só continuar a andar. Não desaparecer. Especialmente em Inglaterra, és visto por uma determinada parte do panorama teatral e depois cinco anos mais tarde eles voltam e dizem: “Eles ainda estão a fazer isto?” E depois continuas mais cinco anos, e “Ai meu Deus, ainda existem, se calhar devíamos levar isto a sério”. São dez anos da tua vida. Portanto, intriga-me a noção de que é só perseverando que as coisas se tornam visíveis. Há práticas que explodem muito depressa e talvez se extingam muito depressa, mas o que temos feito é um projeto em andamento, juntos.
FF – “Juntos” seria uma boa palavra para acabar…
MD – Mas antes disso, a pergunta inevitável: o que é que esperas de um ano em Lisboa?
TE – Algumas coisas. Uma é que parte desse “juntos” que acabei de referir não é só a companhia, são outros tipos de colaborações e parcerias, portanto em Lisboa já existem parceiros fortes. Temos uma história antiga, talvez a mais antiga contigo, Mark, terá começado por 89… E isso é muito importante, não é uma conversa fechada, tem sido uma conversa longa, felizmente para nós, com um grupo de programadores que têm apoiado o trabalho e que se têm empenhado nele de diferentes formas ao longo desse tempo.
Além disso, a oportunidade de mostrar o trabalho não só com a companhia, mas também o meu trabalho no contexto da arte contemporânea e outros tipos de projetos em colaboração… é bastante único. De vez em quando, tivemos a oportunidade de fazer um pequeno mini-festival algures aqui ou ali, talvez para mostrar uma ou duas peças, mas a oportunidade que o projeto do Artista na Cidade oferece é ser um mostruário para uma enorme diversidade e variedade de coisas no curso de um período prolongado. Estou ansioso por que aconteça e é uma possibilidade incrível de inaugurar uma conversa com os públicos.
E também me entusiasma fomentar conversas criativas com muitas pessoas diferentes, escrever textos para a Companhia Maior e para o projeto PANOS, o que vai levar o meu trabalho com texto para junto de pessoas novas. Também é ótimo pensar em estar em conversas e colaborações com outros artistas da cidade. Estou muito entusiasmado em pensar numa relação com a própria cidade, pondo peças de néon em vários lugares, escrevendo sobre Lisboa… Vai ser a primeira vez que há este tipo de foco num único lugar ao longo de um período de 12 meses. Portanto, vou como que mudar-me para Lisboa, o que vai ser muito bom [risos]… embora tmbém possa ser preciso em muitos outros lugares!
MD – És muito bem-vindo. Acho que fizemos uma hora…
TE – Ótimo, obrigado. Enviei-vos aquela fotografia de onde eu estou agora.
FF – Sim, aqui está ela. Um telhado…
MD – … Com um letreiro que diz A STITCH IN TIME.
TE – É uma peça nova! É uma coisa que fiz para Derry, onde estou agora, na Irlanda do Norte. O texto vem de um ditado inglês, “A stitch in time saves nine”, o que quer dizer que se devia resolver um problema depressa porque de outra forma torna-se cada vez maior [“dar um ponto a tempo evita outros nove”, próximo de “mais vale prevenir do que remediar”].
Este ano, Derry é a Capital da Cultura do Reino Unido e, durante os próximos quatro dias, há um festival de obras de luz, e a minha peça é uma encomenda para isso. Mas vai ser uma obra permanente, vai ficar depois de terminado o festival e vai permanecer no telhado do edifício.
O lugar é uma velha fábrica de camisas, um lugar onde havia mulheres a fazer roupa. Nos anos 70 e 80, foi uma indústria muito grande aqui em Derry e depois veio simplesmente abaixo. Agora está praticamente acabada, toda a manufatura de vestuário foi para o Bangladesh, ou para o Sri Lanka, ou outros lugares. Mas os edifícios ainda estão presentes na paisagem. Portanto queria referir-me à indústria, ao uso passado do edifício. Mas também pensar na situação política aqui… sobre a importância de reparar – de remendar as coisas. Foi só nos últimos dias, na verdade desde que o letreiro foi colocado no telhado, que percebi que ao encurtar a expressão – só para A STITCH IN TIME – fiz com que parecesse que é o próprio tempo a coisa que precisa de ser arranjada. Gosto dessa ideia. Também é bastante mágico – ver a cidade debaixo desta expressão. Transforma o espaço. Isso parece-me entusiasmante.